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O DISFARCE


Não lembrava mais de quem era em público.

Deliciava-se com a vida que levava no privado.

Na intimidade obscura de sua privacidade devaneava por vezes com parceiros sexuais parcimoniosamente escolhidos e se masturbava.

Sem ser vista comia fruta com a mão. Bebia até sorrir sem motivo.

Dormia de tarde.

Andava descalça e sem sutiã.

Exultava.

Chegando alguém se portava. Era o jeito. Não queria ter que explicar. Nem deveria.

Cumpria o papel. Nasceu mulher.

Domingo missa pela manhã e almoço em família de salto e batom.

Aturava o esparrame viril e o futebol.

Ansiava pelas segundas-feiras.

Pensava em se mover, em manter a forma. Mas pensando com mais calma preferia cultivar a forma rotunda para se poupar da fadiga.

Aceitava as regras veladamente impostas. Seduzia-lhe o caminho fácil.

Pagava um preço alto.

Nunca pedira permissão para viver.

Vieram os netos. Maravilha relaxou.

O tempo passou.

Ficou viúva. Comemorou.

Acertou a alimentação. Não comeu mais carne por imposição.

Matriculou-se na academia sem precisar de autorização.

Usou a pensão para viajar pelo mundo na contramão fugindo das férias de verão.

Sem culpa ou medo.

Sem sermão.

Sem perdão.



Imagem: Ângela Márcia #canetalenteepincel #Rodada 90 invertida

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