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A SENHORA


Morta queria ser cremada. As cinzas espalhadas e aos quatro cantos jogadas. Norte, Sul, Leste e Oeste. Nos quatro elementos honrada. Na terra, em uma pradaria. Na água, no mar do Atlântico Sul. Na ventania do sudoeste. No fogo de uma fogueira de São João.

Esparramada como viveu. Sem a menor possibilidade de junção.

Abolindo qualquer chance de igual formação.

Reforçando a tese da excepcionalidade do ser, que disperso pulveriza a atmosfera.

Viveu no limiar da morte.

A intensidade constitutiva de sua temporalidade vincou sua trajetória.

O tempo foi seu senhor, e como chuva passou irrigando a terra por onde pisou.

Ora tempestade, relampejou e trovejou. Muito trovejou. E como trovejou.

Honrou seu caminho. Manifestou-se. Fluiu languidamente na correnteza da maturidade.

Com sua essência inundada, metamorfoseou-se em terra. Dançou e rodou.

Flutuou no ar como um balão.

Afogou-se nas águas nada bentas das cachaças. Mergulhou nua no mar de ressaca.

Ferveu e incendiou alguns leitos. Envolveu, amou e acolheu aqueles a quem chamou de seus.


Deu seus seios a quem bem entendeu.

Propagou sons. Delirou. Por vezes se rendeu.

Vestiu vermelho. Usou preto. Trajou branco, e de azul se cobriu.

Pelo olfato se guiava. A visão puro instinto. Só ouvia o que queria.

No paladar se deleitava.

No toque das mãos curava, extravasava e fazia jorrar excrecências reprimidas.

A vida gritou através de seu corpo. De propósito se ocultava.

Ressurgia por vezes de surpresa. Intencionalmente...por nada.

Viveu em liturgia. Existiu por pura obediência.

No fim, na demência, trôpega cambaleou e levemente tombou.

Esvaneceu sutilmente na névoa de uma tarde qualquer.

Ainda sinto sua presença quando saio do banho quente, quando bebo uma xícara de café puro e quando deixo o chocolate derreter vagarosamente na minha boca.

Imagino encontrá-la quando dobro a esquina.

Nunca será efêmero o que se fez eterno.

Imagem: elaborada pela autora


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