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UM CONTO INFERNAL


Não sabia ao certo o que o tinha levado até ali. Julgava-se uma boa pessoa.

Em vida cumpriu com todas as etapas exigidas pela sociedade. Estudou, casou, teve filhos. Proveu a casa, pagou os estudos das crianças. Considerava-se bom marido e diligente com suas obrigações conjugais.

Entretanto chegada a hora: morreu. Era religioso, porém a fé – esta era relativa tinha preguiça para crendices.

Fato é que estando morto foi conduzido ao portal do inferno. Após rápida entrevista com o “se sabe quem”, foi designado como assistente na proteção e controle da entrada dos quintos. Não era de sua natureza confrontar, argumentar ou contrariar ordens. Hierarquia era coisa que tinha aprendido a respeitar. Assim ensinou seu pai.


Como em vida a nada nem a ninguém se apegou, não houve busca nem procura. Percebeu sem grande esforço através dos fatos, que passou pela vida sem deixar marcas. Nem doeu.

Resignado à sua sina, era imprescindível que aprendesse a lidar com cães ou arrumaria encrenca com Cérbero.

Nesta condição ficou por quase trinta anos. Já velho e cansado era profundo conhecedor das regras, escrituras, pergaminhos, mandos, desmandos, rotas, túneis e saídas das profundezas. Sabia como ninguém quem mandava, seus hábitos e rotinas. Orgulhava-se de sua perspicácia, conhecimento e sagacidade nos assuntos do submundo. Estava tranquilo em sua atividade. Acomodado em seu destino.

Em um dia como outro qualquer foi surpreendido com a notícia de que chegariam novos assistentes de portal do inferno, que em vida tinham com dedicação e esmero se esforçado para alcançar este posto quando mortos estivessem.

Seu superior hierárquico o encarregou de ambientar, situar e treinar nas normas do abismo os novos integrantes.

Não era tarefa fácil. Chatice. Pensou.

Já não tinha mais tanta paciência para a impulsividade característica dos jovens.

Logo chegou o dia da chegada dos novatos. Era uma diversidade só. Alguns, parecidos com ele, resignados e hierárquicos. Outros, ávidos para ganhar poder e prestígio e logo ocupar a cadeira do “se sabe quem”. Não deixava de considerar essa audácia engraçada.

O tempo passou. O período de experiência também. Instalados e em segurança logo organizaram um motim. Para eles as regras vigentes há praticamente quatro bilhões de anos eram inócuas, despiciendas e ultrapassadas. Queriam inovar. Afinal, achavam-se mais demônios que os outros. Tinham estudado para esta finalidade. Se preparado. Eram diabos treinados. Não tinha cabimento que tivessem que dividir espaço com reles endiabrados sem pedigree. Afinal, empenharam-se muito para estarem ali.

Agora sim, o inferno estava um inferno. Constatou.

Aproveitou-se de seu conhecimento e experiência dos anos e começou a pensar em sair.

Inadmissível. Improvável, mas talvez não impossível.

Nunca antes sua zona de conforto tinha sido tão maculada.

Mas conhecia os atalhos. Era maduro o suficiente para saber o que não queria. E com certeza ficar ali batendo palma para diabo dançar não era seu intento. Ousaria quebrar protocolos.

Sabedor de crédito em milhagem com o tinhoso, acalentava a possibilidade de virar a chave de sua final sentença para ascender de nível.

O abismo estava ficando lotado, uns literalmente pisando nas cabeças dos outros. Era a desordem reinando e desestruturando o vai e vem das assombrações.

De uma coisa sabia, não queria ficar para ver o inferno voltar aos Caos. Era muito retrocesso civilizatório para seu gosto.

Realmente, quando até o inferno corre perigo é porque o mundo está mesmo perdido.

Em uma manhã qualquer se evadiu de forma mágica. Não deixou lembranças. Para alguns virou pó.

Foi avistado de branco e auréola nos jardins celestiais.

E os diabinhos novatos? Continuam no inferno que criaram, e como o caminho de ida é de livre arbítrio, lá eternamente ficarão. Se Deus quiser e o Diabo deixar.

Imagem: elaborada pela autora.

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