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O casamento acabou com a chegada do segundo filho. Ele abrindo os olhos para o mundo. Eu fechando os meus para o mundo que até então conhecia.

Agoniava-me o final do expediente. Não sabia para onde voltar. Vagava perdido pela cidade.

Tomei gosto pela bebida. Era a desculpa ideal para beber, fumar e ouvir uma música melancólica, onde entorpecido adormeceria.

Gostava da sensação de celebridade ao chegar ao bar de sempre. Era tratado como um rei. A mesa predileta já reservada. A garrafa de uísque – que custara o dobro do preço do mercado – marcada e etiquetada com meu nome fazia com que me sentisse especial e único.


O pianista toca a música – a minha preferida.

Após três ou quatro doses e com o fim do charuto, sentia-me capaz de copular com qualquer ser vivente que me desse trela.

E assim naquele estado lastimável, tendo que dar conta de mim, dependendo do maître para chamar um táxi que me levasse para o pardieiro que agora chamava de casa. Ansiava veementemente por outra língua para se embolar com a minha.

Ainda não tinha aprendido a lidar comigo. Priorizei o gasto com a bebida à análise.

O meu eu era mistério. Minha alma limitada, restrita e abstraída pelos desígnios de um cérebro confuso não impunha comando ao corpo, que frágil sucumbia.

Até hoje não sei como a encontrei. Nem onde e como.

Sei que quando acordei ela estava ao meu lado na cama. Não costumo colocar na bebida a culpa pelos meus desatinos. Mas confesso de nada recordar.

Disse-me que saiu do meu passado. Disse-me também que o que era considerado passado para mim, para ela fora seu perpetrado presente.

Rezou, orou, fez feitiço. Sabia convictamente que no futuro iria me encontrar perdido em algum lugar.

Preferi a memória não revirar. Entretanto suspeitava em segredo da evolução dos fatos que racionalmente não conseguia explicar.

O que parecia doença dentro da doença, no momento era cura.

Angustiava-me a ausência de rota para o futuro.

Estava perdido no presente.

O passado congelado em meu peito doía e cortava a carne como uma lâmina quente.

Lembrei-me do tempo. Lembrei-me do nascimento do meu filho. Lembrei-me do quanto ele demorou a ficar pronto.

Resolvi me entregar e esperar.

Certeza só tenho a de que quando chegar a hora vou te contar.

Imagem: Unsplash/Robert Dickow


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