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LETE


Engordou vinte quilos.

Vagava pelas ruas do bairro onde morava, descalça e descabelada.

Largou-se definitivamente.


Tudo o que queria era ficar naquele estado rememorativo de êxtase.

Só assim para preservá-lo por perto.

Mal se recordava do último banho.

Seu cérebro tinha espaço apenas para as lembranças do último encontro.

Parecia aos outros que havia esquecido de quem era.

Estavam enganados.

Sabia muito bem quem era e o que queria.

Ah, como sabia.

Queria os batimentos cardíacos alterados. A secura na boca. O aperto no estômago. A respiração sôfrega e intermitente.

Ansiava permanecer naquela placidez lânguida e atemporal.

Não havia quem conseguisse tirá-la daquele transe planejado.

Deleitava-se.

Os familiares preocupados queriam interná-la.

Os amigos afastaram-se assustados.

Balbuciava frases desconexas com profundos sentidos.

Ouvia os gritos da realidade.

Sentia o cheiro da normalidade.

A temperatura do mundo invadia seu corpo através de seus pés.

Arregalava os olhos que insistiam em fechar.

Trôpega e nefelibata diante da insistência alheia em fazê-la beber um pouquinho da água do Lete, agredia:

Não me peçam para esquecer;

Só me sinto viva por lembrar.

Obs.: Exercício Escola Passagens - Tema: "Lete"

Imagem: lendasnoescuto.blogspot.com


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